terça-feira, 22 de outubro de 2013

Texto de apoio aula de 3ª 29 - Prof. Rosário Pimentel


Miguel Real
O último negreiro


1.     O livro

Eu vou ler um texto – estou já a ler, e do facto peço desculpa, mas , tal como o homem que não teve tempo para escrever uma carta mais breve, também eu não tive tempo para preparar um improviso. O Último Negreiro (2006) não é o único romance de Miguel Real que se debruça sobre a questão dos escravos no Portugal que já estava a ser Brasil. Mas é o único que tem um tão carregado e claro – negramente claro – título. A ele voltaremos.

2.     O autor panóptico

Miguel Real, que espero não esteja hoje na sala, porque é embaraçoso falar na cara das pessoas, sobretudo se é para dizer bem, é um autor omnívoro, e vem desde há uma, duas décadas traçando um mapa exaustivo da cultura portuguesa, não hesitando sequer em entrar por aspectos concretos – o romance português hoje, com uma enciclopédica relação de autores –, seja em planos mais abstractos, como em Nova Teoria do Mal. É omnívoro, bulímico, imparável. Nem sempre o mais sintético – mas quase sempre o mais generoso, o mais exaustivo, o mais amplo, consistente e persistente. São qualidades não de somenos. E fá-lo em ficção e ensaio (ou seja, na minha óptica, em ensaio e ensaio. [Na óptica de outros, em ficção e ficção.]

3.     A ficção enquanto ensaio

De facto, para mim, a ficção que vale a pena é sempre ensaio: um instrumento de trabalho problematizante. E, por vezes (não tenhamos peias nem complexos), didáctico. Como sugere Kundera em A Arte do Romance, o romance vale a pena quando é ensaio, e o contrário, o contrário também talvez... Lembro-me ainda da felicidade com que li, aos 14 anos, Unidade e diversidade em Fernando Pessoa de Jacinto do Prado Coelho, ou, aos 20, Fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes. Agora estou a ler Zona de Geoff Dyer, que segue – quase fotograma a fotograma – o filme Stalker de Tarkovsky.  [Por sua vez baseado no romance Piquenique à beira da estrada dos irmãos Arkadi e Boris Strugatsky.] E o que são os Sermões de Vieira, ao qual Miguel Real dedicará, numa espécie de prequela deste, o romance O Sal da Terra, de 2008?

Miguel Real tem – tenta ter – essa visão panóptica do mundo, e das respostas que, por palavras, podemos dar a esse mundo.

4.     Encurtar a distância

E são exemplares, os seus livros: querem contar uma história interessante mas querem também dar a compreender – e, se possível, a ver. O romance O Último Negreiro é isso tudo: um ensaio, porque problematiza, um diálogo com a História, porque a busca, um texto parcialmente didáctico, porque quer ajudar a entender. [No epílogo o autor diz mesmo, para quem não tiover entendido, o que esteve a mostrar durante 350 páginas.] O Último Negreiro é também um conjunto de artigos – variações sobre um tema – que quase sem prejuízo podem ser lidos soltos, técnica recorrente noutras obras. [Como se o autor estivesse a fazer um congresso consigo próprio, onde ele envia todas as comunicações a ler durante os 3-5 dias do encontro.] E é, sobretudo, um romance porque tenta dar a ver e porque (cá está de novo a ética do romance] encurta a distância para o Outro. Neste caso, o Outro em nós, porque o protagonista aparente, Félix de Sousa, embora não pareça, é nós. Não é só aquela cara que não é estranha, é também aquele coração, aquele carácter, aquele ser humano.

5.     O outro em nós

Com efeito, em 2013 o Outro já não é o negro, o mulato, a mulher, o estrangeiro, o escravo, o oriental, nem sequer o marciano. O Outro, hoje, nesta época bem-pensante e de paz aparente, é o esclavagista, o negreiro, o homem que trata os outros como mercadoria, o capataz do horror. E é precisamente esse abominável Outro que, numa época onde houve heróis e gente bem mais decente a merecer ser protagonista de romance, Miguel Real escolhe para: a) cabeça de cartaz; 3) herói (herói anti-heróico mas ainda assim herói da história); 4) objecto, até certo ponto da nossa simpatia – o facto é que damos por nós a torcer por ele quando enfrenta adversários e adversidades, seja quando leva uma tareia, seja quando recupera a dignidade fazendo trabalhos indignos (chicotear escravos), seja quando começa a recuperar o capital (ou seja, a chular escravos), seja quando se vinga (do banqueiro Marinhas), seja quando se perde qual Robinson Crusoe com Sexta-Feira (o seu parceiro Pedra/Jau/servo/cúmplice/amante/irmão/e tudo mais), seja quando é envenenado, ou descobre que tem paludismo, ou é encarcerado pelo rei negro Adondozan, vendedor de escravos, seja quando finta os bons polícias (a ONU daquele tempo), ou seja, os barcos franceses e ingleses....

Esta última operação – a de humanizar Félix – é a mais terrível, e Miguel Real leva-a a bom porto, usando de uma estratégia simples e eficaz. Se nós estamos no tempo da simpatia como vítima (pelo menos, nós leitores de romances e ensaios), então a cena de abertura mostrará o protagonista como vítima, sendo quase morto numa agressão violenta pelos jagunços de um banqueiro, quando ia apenas pedir o que era justo – a justa paga por...

[ter vendido uns 50 escravos, mas isso agora não interessa nada. É difícil odiarmos alguém que está a ser espancado daquela maneira. Além disso, a nossa antipatia imediata – vá lá saber-se porquê – vai para o banqueiro. Meta-se, nos dias de hoje, uma víbora num duelo com um banqueiro, ou mesmo um advogado, e a nossa simpatia em 2013 provavelmente irá para a víbora, ou até mesmo para o advogado.]

6.     O que foi a escravatura?

É este o tema do livro, bem entendido, mais do que a vida do protagonista. Há um título, que remete para uma personagem, mas na verdade passado o prólogo – Francisco Félix de Sousa está a ser agredido até à morte pelo banqueiro Marinhas, que lhe chama «um alucinado», como depois o fará o amigo Simão – Francisco Félix de Sousa desaparece praticamente durante o primeiro terço do livro. Miguel Real vai dar-nos o contexto, aqui efabular com base em factos históricos, acoli quase só dar-nos mesmo os factos. É um livro documentado, como se pode ver na bibliografia e nas imagens, e que quer ser documento. Quer, literalmente, contribuir, mais do que receber. Quer contribuir para o debate, para o conhecimento; O Último Negreiro tem esse pendor generoso de dar algo ao leitor. (O movimento oposto seria o do romance histórico de pacotilha, que, tipo filme da Disney, apenas se aproveita do fascínio por uma época para leviana e anacronicamente contar estórias de espadachins. Miguel Real não pilha a história – pelo contrato, todas as pepitas que encontre devolve-as ao bem comum.)  

Se o objectivo é entender, o método quase sempre escolhido não é o explicar, é o show & tell. A narração vai dando a entender o que é a escravatura – mas através da narração e da descrição, instrumentos literários, mais do que por um explícito comentário ideológico. Excepto no epílogo, que para mim seria mais uma nota de autor, mas que precisamente tem graça por, fechando metadiscursivamente a história, o autor colocar ao nível romanesco do resto livro: aí sim, no epílogo, Miguel Real diz ao que vai, ou ao que foi. «.......»

Mas o que o autor disse, meramente narrando e descrevendo, foi mais do que suficiente: a mercadoria que ocasionalmente se estraga na viagem) e, por questões higiénicas, tem de ser jogada ao mar; as sucessivas camadas de oportunismo, cinismo, ganância, na escala o sistema esclavagista; a insustentável crueldade, a par de outras promiscuidades mais ambíguas numa sociedade onde os opostos vivem apesar de tudo lado a lado, para não falar do convívio entre escravos, libertos, potenciais libertos, ou da paz podre (ou guerra fria) entre quilombos e cidades. E também da tão actual necessidade económica de baixar salários – o equivalente à já célebre frase de Borges – o economista cego, não o escritor), «Baixar os salários não é apenas uma necessidade, é uma urgência». 

Atente-se nesta passagem seca e quase denotativa:

137: «Os métodos artesanais de Francisco Félix de Sousa, herdando do pai o trato, negociando em pequenos magotes de escravos, especializando-os em profissões, tinham sido ultrapassados, aos novos escravos exigia-se apenas força muscular para o corte da cana e a apanha do capucho de algodão e da folha de fumo, deixando para os descendentes dos antigos escravos, os crioulos ou ladinos, as funções domésticas e artesanais . Desde que o seu pé tocara areia da praia do Chega-Negro, oito anos de vida era o que o senhor de engenho exigia do escravo, o suficiente para amortizar em trabalho o investimento feito na compra (...).»

7.     O mau da fita?

O título é todo um programa. Outros título do autor são metafóricos – O Sal da Terra, A Voz da Terra ­– mas este é de uma clareza lapidar: O Último Negreiro. Ou seja, aquele que ainda traficava escravos mesmo quando já muitos tinham percebido que algo de errado havia numa economia que dependia do tráfico humano. [Hoje já não há disso, graças a Deus!]

Como podiam aqueles homens fazer aquilo que hoje nos parece inaceitável? Que tipo de homens eram aqueles?

157: «Estes homens, pensava João Luiz Abreu, de tanto conviverem com os escravos ficam como eles – os mestres atravessadores eram homens cruéis, solitários, avarentos (...»

E Francisco Félix de Sousa?

288: «Félix de Sousa respondia que desde os cinco anos de idade manipulava o chicote como as outras crianças brancas a pena de escrever (...)»

Como já foi dito, Miguel Real faz um não fácil (e também não bonito) milagre: humaniza o protagonista. Já no-lo tinha humanizado no início – nós estamos sempre do lado que apanha – a ser violentado e injustiçado por aquele que intuímos logo ser o mau da fita, o Banqueiro Marinhas. E vamos então, de mão dada com o autor, à procura do humano

O certo é que Félix é um bruto mas tem algum orgulho, alguma hombridade em toda a sua bruteza:

150: «(...) d. Francisquinha envergonha-se do teu trabalho, (...) é trabalho de mulato, diz ela, já nem os mulatos o querem, agora são os pretos rufiões que se tornam capatazes de escravos correços (...)»

E, sim, é o mau da fita mas não é o verdadeiro vilão, ou pelo menos não muito mais vilão do que os outros. Será apenas, sugere-nos Miguel Real, o homem que suja as mãos. Como o pide ou o torcionário que, tantas vezes, não é senão um camponês fazendo honestamente o seu des/onesto trabalho. Uma figura que me ocorre é a do russo Viktor Bout, traficante de armas que hoje está preso (desde 2008) e com chave deitada fora. Não deixando de ser uma personagem abominável, sabemos tratar-se de apenas um peão mais num tabuleiro onde a hipocrisia impera – dado que os países que promoveram a sua prisão têm forte renda no negócio da venda de armas...[ enfim, cala-te, boca. Cala-te boca, em 2013, se não queres ser amordaçada.] 

150: «Samuel perguntara por Francisco Félix de Sousa, não porque o desejasse a trabalhar no armazém, bem queria um pé-rapado como o Félix \longe dos seus negócios, brancos desses só traziam sarilhos, mas porque, (...) lobrigando Félix a sulcar a terra com o chicote, descobrira a solução para a desocupação dos terrenos de Rio das Rãs, o Félix era o malfeitor ajustado para expulsar aquela pretalhada (...).»

Félix de Sousa é a expressão do seu tempo: um bruto, aos nossos olhos (aos meus, pelo menos), um monstro pelos seus actos (um crime do qual bons pensamentos não me redimem). Mas, sendo a expressão desse tempo portuguez... não sei, já esqueci o que ia a dizer.   

8.     Redenção

Acreditariam mesmo muitos em discursos como este?

187: «mas o capitão assegurava-lhe que a Igreja Católica defendia a escravatura, era a tese do resgate, explicava, ele próprio a aprendera com os capelães dos navios negreiros: (...) um negreiro é um herói para a Igreja Católica, afiançava, um libertador de pretos das garras do demónio, o mais heróico feito cometido hoje para glória de Deus.»

Este Francisco Félix de Sousa, parte na segunda metade da sua vida para a fonte do mal ou, pelo menos, a fonte dos escravos. De receptor passa a fornecedor. De traficante de escravos branco torna-se quase outra coisa.

Diz-se que, no seu pior, um romance se assemelha a um ensaio, um texto académico, discursivo, chato, pesado. Eu diria que, no seu melhor, um romance se aproxima do ensaio: provocador, inteligente, tentando tornar o outro inteligível. Miguel Real conta uma história de quase redenção: a redenção possível, para um homem capaz de tanto mal como Francisco Félix de Sousa. Duas redenções: a sua, interna e, até certo ponto, externa; a da sua descendência. Miguel Real não redime a personagem mas, de algum modo, redime-nos a nós.

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