Miguel Real
O último negreiro
1. O livro
Eu vou ler
um texto – estou já a ler, e do facto peço desculpa, mas , tal como o homem que
não teve tempo para escrever uma carta mais breve, também eu não tive tempo
para preparar um improviso. O Último
Negreiro (2006) não é o único romance de Miguel Real que se debruça sobre a
questão dos escravos no Portugal que já estava a ser Brasil. Mas é o único que
tem um tão carregado e claro – negramente claro – título. A ele voltaremos.
2. O autor panóptico
Miguel Real,
que espero não esteja hoje na sala, porque é embaraçoso falar na cara das
pessoas, sobretudo se é para dizer bem, é um autor omnívoro, e vem desde há uma,
duas décadas traçando um mapa exaustivo da cultura portuguesa, não hesitando
sequer em entrar por aspectos concretos – o romance
português hoje, com uma enciclopédica relação de autores –, seja em
planos mais abstractos, como em Nova
Teoria do Mal. É omnívoro, bulímico, imparável. Nem sempre o mais sintético
– mas quase sempre o mais generoso, o mais exaustivo, o mais amplo, consistente
e persistente. São qualidades não de somenos. E fá-lo em ficção e ensaio (ou
seja, na minha óptica, em ensaio e ensaio. [Na óptica de outros, em ficção e
ficção.]
3. A ficção enquanto ensaio
De facto,
para mim, a ficção que vale a pena é sempre ensaio: um instrumento de trabalho
problematizante. E, por vezes (não tenhamos peias nem complexos), didáctico. Como
sugere Kundera em A Arte do Romance,
o romance vale a pena quando é ensaio, e o contrário, o contrário também talvez...
Lembro-me ainda da felicidade com que li, aos 14 anos, Unidade e diversidade em Fernando Pessoa de Jacinto do Prado
Coelho, ou, aos 20, Fragmentos de um
discurso amoroso de Roland Barthes. Agora estou a ler Zona de Geoff Dyer, que segue – quase fotograma a fotograma – o
filme Stalker de Tarkovsky. [Por sua vez baseado no romance Piquenique à beira da estrada dos irmãos
Arkadi e Boris Strugatsky.] E o que são os Sermões de Vieira, ao qual Miguel
Real dedicará, numa espécie de prequela deste, o romance O Sal da Terra, de 2008?
Miguel Real
tem – tenta ter – essa visão panóptica do mundo, e das respostas que, por
palavras, podemos dar a esse mundo.
4. Encurtar a distância
E são
exemplares, os seus livros: querem contar uma história interessante mas querem
também dar a compreender – e, se possível, a ver. O romance O Último Negreiro é isso tudo: um
ensaio, porque problematiza, um diálogo com a História, porque a busca, um
texto parcialmente didáctico, porque quer ajudar a entender. [No epílogo o
autor diz mesmo, para quem não tiover entendido, o que esteve a mostrar durante
350 páginas.] O Último Negreiro é
também um conjunto de artigos – variações sobre um tema – que quase sem
prejuízo podem ser lidos soltos, técnica recorrente noutras obras. [Como se o
autor estivesse a fazer um congresso consigo próprio, onde ele envia todas as
comunicações a ler durante os 3-5 dias do encontro.] E é, sobretudo, um romance
porque tenta dar a ver e porque (cá está de novo a ética do romance] encurta a distância para o Outro. Neste
caso, o Outro em nós, porque o protagonista aparente, Félix de Sousa, embora
não pareça, é nós. Não é só aquela cara que não é estranha, é também aquele
coração, aquele carácter, aquele ser humano.
5. O outro em nós
Com efeito,
em 2013 o Outro já não é o negro, o mulato, a mulher, o estrangeiro, o escravo,
o oriental, nem sequer o marciano. O Outro, hoje, nesta época bem-pensante e de
paz aparente, é o esclavagista, o negreiro, o homem que trata os outros como
mercadoria, o capataz do horror. E é precisamente esse abominável Outro que,
numa época onde houve heróis e gente bem mais decente a merecer ser
protagonista de romance, Miguel Real escolhe para: a) cabeça de cartaz; 3)
herói (herói anti-heróico mas ainda assim herói da história); 4) objecto, até
certo ponto da nossa simpatia – o facto é que damos por nós a torcer por ele
quando enfrenta adversários e adversidades, seja quando leva uma tareia, seja
quando recupera a dignidade fazendo trabalhos indignos (chicotear escravos),
seja quando começa a recuperar o capital (ou seja, a chular escravos), seja
quando se vinga (do banqueiro Marinhas), seja quando se perde qual Robinson
Crusoe com Sexta-Feira (o seu parceiro Pedra/Jau/servo/cúmplice/amante/irmão/e
tudo mais), seja quando é envenenado, ou descobre que tem paludismo, ou é
encarcerado pelo rei negro Adondozan, vendedor de escravos, seja quando finta
os bons polícias (a ONU daquele tempo), ou seja, os barcos franceses e ingleses....
Esta última
operação – a de humanizar Félix – é a mais terrível, e Miguel Real leva-a a bom
porto, usando de uma estratégia simples e eficaz. Se nós estamos no tempo da
simpatia como vítima (pelo menos, nós leitores de romances e ensaios), então a
cena de abertura mostrará o protagonista como vítima, sendo quase morto numa
agressão violenta pelos jagunços de um banqueiro, quando ia apenas pedir o que
era justo – a justa paga por...
[ter vendido
uns 50 escravos, mas isso agora não interessa nada. É difícil odiarmos alguém
que está a ser espancado daquela maneira. Além disso, a nossa antipatia
imediata – vá lá saber-se porquê – vai para o banqueiro. Meta-se, nos dias de
hoje, uma víbora num duelo com um banqueiro, ou mesmo um advogado, e a nossa
simpatia em 2013 provavelmente irá para a víbora, ou até mesmo para o
advogado.]
6. O que foi a escravatura?
É este o
tema do livro, bem entendido, mais do que a vida do protagonista. Há um título,
que remete para uma personagem, mas na verdade passado o prólogo – Francisco
Félix de Sousa está a ser agredido até à morte pelo banqueiro Marinhas, que lhe
chama «um alucinado», como depois o fará o amigo Simão – Francisco Félix de
Sousa desaparece praticamente durante o primeiro terço do livro. Miguel Real
vai dar-nos o contexto, aqui efabular com base em factos históricos, acoli
quase só dar-nos mesmo os factos. É um livro documentado, como se pode ver na
bibliografia e nas imagens, e que quer ser documento. Quer, literalmente,
contribuir, mais do que receber. Quer contribuir para o debate, para o
conhecimento; O Último Negreiro tem
esse pendor generoso de dar algo ao leitor. (O movimento oposto seria o do
romance histórico de pacotilha, que, tipo filme da Disney, apenas se aproveita
do fascínio por uma época para leviana e anacronicamente contar estórias de
espadachins. Miguel Real não pilha a história – pelo contrato, todas as pepitas
que encontre devolve-as ao bem comum.)
Se o
objectivo é entender, o método quase sempre escolhido não é o explicar, é o show & tell. A narração vai dando a
entender o que é a escravatura – mas através da narração e da descrição,
instrumentos literários, mais do que por um explícito comentário ideológico. Excepto
no epílogo, que para mim seria mais uma nota
de autor, mas que precisamente tem graça por, fechando metadiscursivamente
a história, o autor colocar ao nível romanesco do resto livro: aí sim, no
epílogo, Miguel Real diz ao que vai, ou ao que foi. «.......»
Mas o que o
autor disse, meramente narrando e descrevendo, foi mais do que suficiente: a
mercadoria que ocasionalmente se estraga na viagem) e, por questões higiénicas,
tem de ser jogada ao mar; as sucessivas camadas de oportunismo, cinismo,
ganância, na escala o sistema esclavagista; a insustentável crueldade, a par de
outras promiscuidades mais ambíguas numa sociedade onde os opostos vivem apesar
de tudo lado a lado, para não falar do convívio entre escravos, libertos,
potenciais libertos, ou da paz podre (ou guerra fria) entre quilombos e
cidades. E também da tão actual necessidade económica de baixar salários – o
equivalente à já célebre frase de Borges – o economista cego, não o escritor),
«Baixar os salários não é apenas uma necessidade, é uma urgência».
Atente-se
nesta passagem seca e quase denotativa:
137: «Os métodos artesanais de Francisco Félix de Sousa,
herdando do pai o trato, negociando em pequenos magotes de escravos,
especializando-os em profissões, tinham sido ultrapassados, aos novos escravos
exigia-se apenas força muscular para o corte da cana e a apanha do capucho de
algodão e da folha de fumo, deixando para os descendentes dos antigos escravos,
os crioulos ou ladinos, as funções domésticas e artesanais . Desde que o seu pé
tocara areia da praia do Chega-Negro, oito anos de vida era o que o senhor de
engenho exigia do escravo, o suficiente para amortizar em trabalho o
investimento feito na compra (...).»
7. O mau da fita?
O título é
todo um programa. Outros título do autor são metafóricos – O Sal da Terra, A Voz da Terra – mas este é de uma clareza
lapidar: O Último Negreiro. Ou seja,
aquele que ainda traficava escravos mesmo quando já muitos tinham percebido que
algo de errado havia numa economia que dependia do tráfico humano. [Hoje já não
há disso, graças a Deus!]
Como podiam aqueles
homens fazer aquilo que hoje nos parece inaceitável? Que tipo de homens eram
aqueles?
157: «Estes
homens, pensava João Luiz Abreu, de tanto conviverem com os escravos ficam como
eles – os mestres atravessadores eram homens cruéis, solitários, avarentos
(...»
E Francisco Félix
de Sousa?
288: «Félix de Sousa respondia que desde os cinco anos de
idade manipulava o chicote como as outras crianças brancas a pena de escrever
(...)»
Como já foi
dito, Miguel Real faz um não fácil (e também não bonito) milagre: humaniza o
protagonista. Já no-lo tinha humanizado no início – nós estamos sempre do lado
que apanha – a ser violentado e injustiçado por aquele que intuímos logo ser o
mau da fita, o Banqueiro Marinhas. E vamos então, de mão dada com o autor, à
procura do humano
O certo é
que Félix é um bruto mas tem algum orgulho, alguma hombridade em toda a sua
bruteza:
150: «(...) d. Francisquinha envergonha-se do teu trabalho,
(...) é trabalho de mulato, diz ela, já nem os mulatos o querem, agora são os
pretos rufiões que se tornam capatazes de escravos correços (...)»
E, sim, é o
mau da fita mas não é o verdadeiro vilão, ou pelo menos não muito mais vilão do
que os outros. Será apenas, sugere-nos Miguel Real, o homem que suja as mãos.
Como o pide ou o torcionário que, tantas vezes, não é senão um camponês fazendo
honestamente o seu des/onesto trabalho. Uma figura que me ocorre é a do russo
Viktor Bout, traficante de armas que hoje está preso (desde 2008) e com chave
deitada fora. Não deixando de ser uma personagem abominável, sabemos tratar-se
de apenas um peão mais num tabuleiro onde a hipocrisia impera – dado que os
países que promoveram a sua prisão têm forte renda no negócio da venda de
armas...[ enfim, cala-te, boca. Cala-te boca, em 2013, se não queres ser
amordaçada.]
150: «Samuel perguntara por Francisco Félix de Sousa, não
porque o desejasse a trabalhar no armazém, bem queria um pé-rapado como o Félix
\longe dos seus negócios, brancos desses só traziam sarilhos, mas porque, (...)
lobrigando Félix a sulcar a terra com o chicote, descobrira a solução para a
desocupação dos terrenos de Rio das Rãs, o Félix era o malfeitor ajustado para
expulsar aquela pretalhada (...).»
Félix de
Sousa é a expressão do seu tempo: um bruto, aos nossos olhos (aos meus, pelo
menos), um monstro pelos seus actos (um crime do qual bons pensamentos não me
redimem). Mas, sendo a expressão desse tempo portuguez... não sei, já esqueci o
que ia a dizer.
8. Redenção
Acreditariam
mesmo muitos em discursos como este?
187: «mas o capitão assegurava-lhe que a Igreja Católica
defendia a escravatura, era a tese do resgate, explicava, ele próprio a
aprendera com os capelães dos navios negreiros: (...) um negreiro é um herói
para a Igreja Católica, afiançava, um libertador de pretos das garras do
demónio, o mais heróico feito cometido hoje para glória de Deus.»
Este
Francisco Félix de Sousa, parte na segunda metade da sua vida para a fonte do
mal ou, pelo menos, a fonte dos escravos. De receptor passa a fornecedor. De
traficante de escravos branco torna-se quase outra coisa.
Diz-se que,
no seu pior, um romance se assemelha a um ensaio, um texto académico,
discursivo, chato, pesado. Eu diria que, no seu melhor, um romance se aproxima
do ensaio: provocador, inteligente, tentando tornar o outro inteligível. Miguel
Real conta uma história de quase redenção: a redenção possível, para um homem
capaz de tanto mal como Francisco Félix de Sousa. Duas redenções: a sua,
interna e, até certo ponto, externa; a da sua descendência. Miguel Real não
redime a personagem mas, de algum modo, redime-nos a nós.
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